Para poder seguir com a própria reflexão e análise das obras de José Cardoso Pires achamos pertinente esboçar algumas considerações teóricas sobre a relação da literatura com a cultura, quer em geral quer de uma sociedade em concreto.
Tal como acontece em outros campos artísticos, também a literatura é formada em função das outras relações exercidas lado a lado conforme o tempo e o espaço em que estas ocorrem. Como fundamental seria relacionar a Literatura com a Cultura pois esta união podemos entender como uma manifestação discursiva que pode ser lida nas suas remissões a um solo cultural específico. A nossa óptica da leitura parte desta premissa de a literatura ser uma «manifestação discursiva» em permanente contacto com as outras que, em conjunto vão constituindo todo o que é a Cultura. Consequentemente, entendemos que qualquer discurso, quer literário quer não, desenvolve-se a partir de uma «vinculação ideológica» de certa forma rígida com os pressupostos culturais que apoiam este discurso de modo a poder estar remetido a um espaço cultural determinado.
A teoria da literatura contemporânea baseia os seus pressupostos fundamentais numa teoria geral dos discursos. Neste sentido desenvolveu o seu pensamento Michel Foucault, segundo o qual sabemos que a Literatura, tal como a Psicologia, a Sociologia e naturalmente também a História são acontecimentos discursivos permitidos pelas determinadas regras de formação, mesmo que o próprio enunciador não tenha consciência delas:
As regras de formação discursiva têm lugar não na mentalidade ou na consciência dos indivíduos, mas no próprio discurso; elas impõem, por conseguinte, segundo um tipo de anonimato uniforme a todos os indivíduos que tentam falar neste campo discursivo.10
Trata-se então das regras de formação que definem a sequência e a regularidade dos enunciados dos campos referidos e estes enunciados são simplesmente manifestações de uma formação discursiva, entendidas aqui como «a prática discursiva»:
Finalmente o que se chama «a prática discursiva» é um conjunto de regras anónimas, históricas, sempre determinadas no tempo e no espaço, que definiram, em uma época dada, e para uma determinada área social, económica, geográfica ou linguística, as condições de exercício da função enunciativa.11
Desta afirmação é-nos apresentada a prática discursiva como uma actividade raramente racional que condiciona até o próprio enunciador que narra. É, portanto, necessário levar em consideração também as relações extra-textuais, presentes em quaisquer discursos, que se desenvolvem à parte da intenção do enunciador. Sendo assim compreendemos que o texto literário está a ser constantemente influenciado pelas pressões externas e por isso o discurso não pode ser exclusivamente entendido como uma realidade independente e completa.
Além disso sabemos que os textos literários reflectem também uma realidade linguístico-estilística, digamos um nível linguístico, inerente à literatura e aspectos extra-linguísticos, que completam todo o significado.
Para a nossa leitura das obras referidas na parte introdutória deste trabalho precisamos de ressaltar a importância da questão do referente extra-linguístico da literatura. Este elemento deveria ser objectivado aquando à análise do texto por estar inscrito num contexto mais amplo onde se escreve a Literatura, pois este elemento resulta como o «produto» da cultura da sociedade.
Seguindo as palavras do crítico literário Luiz Costa Lima à procura de caracterizar o referente extra-verbal, verificamos a delineada relação entre a Cultura e Literatura:
Este elemento alheio ao sistema verbal não é um dado, mas sim um participante de outro sistema igualmente simbólico, de inscrição semiológica. A cultura não passa de um conjunto de inscrições semiológicas. Neste sentido, fora da cultura, isto é, no conjunto de suas linguagens, o real é o impossível.12
O referente extra-verbal não é constituído então por um dado empírico como, por exemplo, um acontecimento histórico ou qualquer realidade que falaria independente da linguagem, pois entre o simbólico e o dado natural, já medeia um conjunto de códigos distinto.13
O referente do discurso é, assim, um elemento já cultural, implantado simbolicamente na cultura e é apenas enquanto a inscrição cultural, ou seja, enquanto a realidade simbólica que o referente interessa à análise e interpretação do discurso literário:
Se o referente importa à análise do discurso é porque, sob a sua aparência de dato bruto revela-se sua verdadeira inscrição cultural-semiológica.14
O texto literário deve ser, conforme o afirmado acima, entendido como um produto e simultaneamente como o produtor de uma cultura, pois ao mesmo tempo que a escreve, apresentando-a numa realidade própria, ficcional, inscreve-se nela e é, ao lado de uma grande diversidade de discursos, absorvido pelo seu património discursivo.
Estas considerações entendemos como fundamentais para poder afirmar que da mesma maneira que a linguagem de um indivíduo, tem sido influenciada pelos aspectos alheios e inconscientes, o texto literário também é condicionado pela personalidade e linguagem do seu autor e, antes de mais, pela linguagem da sua Cultura.
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